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Hamburg: Março 2024 #1

Este ano, no mês de Março estive em Hamburgo: marquei a viagem de forma a abalar de avião na madrugada a seguir às eleições legislativas, para não ficar deprimida. Desliguei aquele canal medonho e andei quilómetros a pé por outros canais a olhar o mundo. O objectivo era ver a exposição do Friedrich na Kunsthalle. Quando lá cheguei o funcionário da recepção informou-me que tinham vendido na Internet todos os bilhetes até ao fim da exposição. Disse-lhe que não sabia, quase chorei, e tinha apanhado o avião de Lisboa de propósito. E tinha visto as suas pinturas numa viagem que fiz a Berlim. Ele tinha os olhos de um azul límpido impressionante. Perguntei-lhe pelo catálogo, disse-me que só havia em alemão. Estávamos a falar em inglês, claro! Disse-lhe que ia comprar na mesma, respondeu-me que assim poderia aprender alemão para ler o catálogo. Respondi que já tinha tentado, mas é muito difícil. E gostaria de um dia ler Rilke em alemão (aí os anjos, os anjos, os anjos…) Já desolada, disse-lhe que me restava ver a arquitectura da cidade que é linda! Então pediu-me para me sentar no hall de entrada, esperar um pouco porque estavam a chegar excursões de velhotes de toda a Alemanha, habitualmente, alguém não podia vir nesses grupos, desistia por motivos de saúde. Se fosse o caso, eu podia visitar a exposição. Sentei-me à espera, um colega dele substituiu no balcão de entrada. Só via casais de velhotes a entrar em fila, são muito organizados e silenciosos. Passado um bocado, os olhos céu límpido vieram na minha direção, perguntou se tinha cartão de crédito, claro que sim. Já ao balcão vendeu-me um bilhete, fez questão de dizer que era o mesmo preço de todos os bilhetes, e dava para as quatro exposições da Kunsthalle. Aconselhou-me a ver as obras de artista contemporâneos no último andar inspirados no Friedrich. Fiquei comovida, agradeci-lhe o gesto. Existem anjos em Hamburgo.

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‘Anselm’ de Wim Wenders

Finalmente vi o ‘Anselm’ de Wim Wenders, e sem o 3D no TVCine, uma vez que ainda não estou curada da doença que apanhei na pandemia, ou seja, maldita misantropia não me leva a por os pés numa sala de cinema. O filme confirmou a minha relação conflitual com a obra do Aselm Kiefer: admiro e em simultâneo assusta-me, rejeito mesmo. Talvez seja um problema cultural, relacionado com a minha miserável condição de portuguesa espanholada, tenho mais afinidades com as culturas do mediterrânio. A escala monumental wagneriana assusta-me, horas e horas de Ópera com recriação de mitologia, tudo aquilo para a eternidade, raios que o partam, os deuses que me acudam! Tive a mesma sensação quando visitei o Museu Pérgamo em Berlim, fiquei esmagada a olhar as portas da Babilónia, é apenas uma das obras monumentais dentro daquela ‘casa de conhecimento e preservação de memória’. Perguntei-me: porquê aqui e para quê? Tenho sentimentos contraditórios com a obra de Anselm Kiefer e com a cultura alemã. Terá a ver com o sentimento de sublime que Kant apresentou na sua Faculdade de Juízo? Lembro-me de ter de o estudar na Faculdade, não foi fácil de entender! Como é que na casa dos vinte anos se vai entender o pensamento de um pietista protestante alemão, que construiu um modelo de sujeito à sua imagem e semelhança, resultando uma complexa abstração? Se bem me lembro, era um modelo de sujeito com um modo de conhecer, agir e sentir ‘superior’, a tal razão tripartida num puzzle muito consistente. O raio do Kant no século XVIII montou o puzzle todo direcionado à perfeição. No caso da estética dita transcendental, do sentimento de belo lembro-me de ser classicamente aprazível e harmonioso, ao contrário do romântico e conflitual sublime, que também poderia ou não ser penoso. E ambos eram preparatórios para o juízo teleológico, a contemplação da natureza era superior à da arte, Kant estava-se a lixar para a arte, a finalidade daquele perfeito puzzle era o transcendente. Por cá no imanente vejo como a ideia de perfeição originou o Holocausto no século XX. Quanto ao Kiefer, anda há muito a escarafunchar as feridas desse passado histórico da sua cultura e confronta-nos com paisagens sublimes em grande escala. Chamam-lhe Nazi, não concordo, apesar de me assustar a sua escala monumental. O facto de estar a escarafunchar o passado nazi não é sinónimo de o ser. Não nos podemos esquecer que Hitler era um artista frustrado. O Kiefer é um grande artista, não faz mal nenhum ao mundo, produz pinturas, esculturas, instalações em larga escala, achei lindo o Wim Wenders filmá-lo a andar de bicicleta no atelier. No futuro, deveríamos poder andar de bicicleta nos museus de arte contemporânea. Ou de patins. O George W. Bush desde que se reformou dedicou-se a pintar uns cães bastante ridículos. O mundo estaria melhor se o Bush tivesse passado a vida inteira a pintar cães.

George W. Bush em 2014, a cor da camisola do artista faz pendant com as pinturas, levam-me a acreditar que são auto-retratos.
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Retratos de Rua (1994)

No verão de 1994, participei num projecto de Eurico Lino do Vale intitulado “Retratos de Rua”, integrado na LIS’94- Lisboa Capital da Cultura Europeia. Para tal, pintei um cenário a partir de “O fado” de Malhoa, onde as pessoas podiam tornar-se os personagens do quadro. O Eurico registava-os em polaroides, com uma técnica fantástica em que a polaroides era impressa em papel, sendo o resultado final muito pictórico. As polaroides eram vendidas quem se fazia retratar, no momento em que eram tiradas e impressas. Estivemos a maior parte do tempo à porta do Centro Cultural de Belém, e os transeuntes reagiam bem ao desafio. Lembro-me que o cenário ficava guardado no CCB, íamos todos os dias para lá numa Vespa, descíamos a ladeira para a porta dos artistas de mota, depois carregávamos o cenário e o material e lá íamos para a porta de entrada. Eu trajava uma saia comprida estilo Severa e o Eurico estava sempre catita, com um colete e porte de fotógrafo de outra época. Foi uma das experiências mais divertidas que tive nestas coisas da criatividade.

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Apresentação de ‘À Tona do Vazio & Reprise’

 Foi no dia 2 de Junho de 2021, na livraria Tigre de Papel em Lisboa, com o Ricardo Marques apresentamos o livro de Miguel Serras Pereira. Estavamos ainda em desconfinamento pandémico, no tempo das máscaras, podem ouvir em posdcast aqui. Nesta sessão li o seguinte texto: 


Li «À Tona do Vazio & reprise» durante o último confinamento, e o poeta Miguel Serras Pereira, que conheci pessoalmente agora, desafiou-me a estar aqui por ter partilhado no Facebook uma pequena nota de leitura. A nota começava assim:


“Em boa hora foi publicada esta antologia que reúne poemas escritos entre 1969 e 2019, excepto três poemas anteriores, segundo indicação do autor na abertura. No entanto, a nota do autor e o prefácio de Emanuel Cameira só li no fim. Fui directa aos poemas, sem ligar à estrutura do volume, que inicia com um conjunto de inéditos, seguindo-se uma seleção de poemas dos seus anteriores livros. Mergulhei de cabeça nos poemas e deixei-me levar, marcando as páginas onde queria voltar, alguns partilhei-os, cada vez tinha mais páginas marcadas e depois andava para a frente e para trás. “

De facto, não tenho o hábito de ler os prefácios nos livros de poesia, tornam-se sempre posfácios, vou directa aos poemas e depois fico por lá ou não. Apercebi-me da estrutura do livro, que inicia no fim da ordem cronológica, e avança em direcção à poesia do passado do autor, quando já ia bastante adiantada na leitura. Também porque durante o confinamento falei no Messenger com o Ricardo Marques, que me enviou a sua recensão crítica ao livro, depois publicada na Colóquio Letras. Na altura disse ao Ricardo que não entendia as referências ao Renascimento descritas no texto, mas tinha sentido que o autor era antigo e moderno em simultâneo. Por exemplo, na página 148, o poema “Talvez um barco”, vi que tinha a estrutura de um soneto, mas reinventada livremente. Não tenho competências para analisar formalmente os poemas, para além de achar que é redutor, porque como diria a poeta e ensaísta Salette Tavares (uma das minhas autoras favoritas): “A obra de arte não é um pastel de massa tenra em que se possa separar o exterior aparente da carne que constitui um recheio” (in «Os efes». E.M. de Melo e Castro, José-Alberto Marques, “Antologia da poesia concreta em Portugal”, Assirio & Alvim, 1973, p.122). Um bom poema é sempre forma e conteúdo, é criação de um todo ou novo «Cosmos».


Existe uma característica na poesia que me seduz muito na leitura, é possível na experiência estética de um poema ver a superfície textual antes ainda de ler, podemos observar como se desenvolve a mancha do texto na página, que é variável ao contrário de uma monótona e linear prosa escrita.  Este aspecto relaciona-se também com a capacidade de síntese desta arte, uma vez que a sua forma estética permite condensar uma enorme quantidade de informação. Aquilo que num ensaio ou numa narrativa se desenvolve em páginas e páginas de forma extensa, num bom poema existe brevemente, num instante denso que foca e exige uma grande concentração por parte do leitor. Creio que é uma das qualidades desta arte maior e mágica das palavras que é a poesia, a síntese e a sua capacidade de condensar informação e surge com uma pequena escala, bem mais pequena que num ensaio ou numa prosa. Escala essa talvez mais humana, se é que se pode apelidar assim. Tenho mais empatia por um estudo de Chopin com a sua forma breve e intensa, do que com uma ópera de Wagner que são horas e horas de música com efeitos especiais para o público não adormecer a meio, com toda aquela complexidade mitológica para a eternidade. Confesso que as obras megalómanas me assustam. Apesar de não se poder comparar fenómenos tão díspares, onde é possível entender e ver as características e qualidades diferentes, sinto-me mais próxima de obras com escalas mais humanas, de que é exemplo este livro que reúne cinquenta anos de poesia de Miguel Serras Pereira.


Ainda em relação à leitura de poesia, gosto de pegar num livro, abri-lo ao calhas, ver e ler um poema e depois deixá-lo a ressoar interiormente, fico a disfrutar da leitura, e quando o poema fica ressoar, tenho vontade de o voltar a ler. E isso aconteceu neste livro que nos reúne aqui hoje. Em “À Tona do Vazio & reprise” encontrei-me com raros e belos poemas de amor que nunca descabam em sentimentalismos, pelo contrário, li poemas onde Eros e Thanatos viajam de mão dadas, canções de amor e morte onde senti a voz de um trovador muito antigo e moderno em simultâneo. Em todos estes poemas encontrei um trabalho de linguagem muito cuidado e rigoroso, onde lúdicos jogos fono-semânticos muitas vezes extravasam estruturas clássicas com uma moderna liberdade livre, numa lírica sempre elegante e temperada de intemporalidade. Talvez por isso andei às voltas enquanto viajei no livro, voltava atrás na leitura enquanto seguia em frente sem me cansar. E quando o terminei de ler sabia que sempre que me lembrar dalgum poema deste livro vou voltar a ler e a ler e a ler.

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Em cada encruzilhada

Em cada encruzilhada (2021). Colagem e aguarela sobre papel, 15x21cm.


Porque és a encruzilhada sempre a teu caminho
de todos os meus passos em cada encruzilhada

Miguel Serras Pereira