Uma vez que o meu texto na revista Alentejo Ilustrado se encontra bastante sintetizado, fica aqui o texto integral como o enviei para a revista:
Évora Experimental 2024: um encontro com a palavra multidisciplinar
Em boa hora surgiu a Évora Experimental, ideia e conceção do arraiolense Feliciano Mira, revitalizando assim o experimentalismo no nosso país. Sendo já a quinta edição, o encontro inaugurou a 25 de Outubro, com a exposição ‘Palavra Explícita, Oculta Palavra’, patente até ao dia 31 de dezembro, nas galerias superiores do Mercado Municipal de Évora. No dia seguinte, no mesmo local, houve várias apresentações de livros; um momento de evocação do poeta José-Alberto Marques, que contou com testemunhos dos autores presentes acompanhados por Maria Sarmento; e o Video Box no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, onde se projetaram vídeos. ‘Palavra Explícita, Oculta Palavra’ apresenta poemas visuais e livros de artista, de autores que seguem o movimento que ficou conhecido como Po.Ex (abreviatura de POesia EXperimental Portuguesa criada por E. M. de Melo e Castro para a exposição ‘PO.EX/80’, na Galeria Nacional de Arte Moderna em Lisboa).
Antes ainda de abordar as obras expostas, relembro que o termo ‘experimental’ surgiu na segunda metade do século XX, devido à infiltração das tecnologias nas produções artísticas e literárias, também com o aparecimento da música eletrónica, que era composta com sons novos realizados por máquinas. O experimental também foi usado como sinónimo de aleatório, resultando ainda da apropriação das noções científicas de investigação, colaboração, teorização e experimentação para o domínio artístico, nomeadamente, na arte processual interdisciplinar deste período.
Em Portugal, o ‘experimental’ apareceu com a publicação dos “Cadernos Antológicos da Poesia Experimental” (1964 e 1966), que surgiram na sequência das revistas de poesia dos anos 50, que reuniam poetas com afinidades estéticas, uma vez que incluíam um primeiro editorial programático. Estas revistas designavam-se de ‘folhas’, ‘fascículos’, ‘cadernos’ ou ‘antologias’, indicando assim não serem publicações periódicas, para escaparem à censura prévia obrigatória no Estado Novo. Em torno dos Cadernos Antológicos, iniciados pelos poetas madeirenses António Aragão (1921-2008) e Herberto Helder (1930-2015) reuniram-se, entre outros autores, Salette Tavares (1922-1994), Ana Hatherly (1929-201) E.M. de Melo e Castro (1932-2014) e José- Alberto Marques (1938-2024), que exibiram a sua experimentação verbo-visual em galerias de arte, realizando também happenings em colaboração com o músico Jorge Peixinho (1940-1995).
Esta primeira geração seguia de perto o experimentalismo europeu, assim como o movimento internacional da poesia concreta, e agiu coletivamente nos últimos anos da ditadura, individualizando depois os seus percursos. Na atual exposição, marca presença uma segunda geração de poetas visuais, maioritariamente, nascidos nos anos 50 do século passado, sendo alguns um pouco mais antigos ou mais jovens. São também autores cujas produções criativas apareceram depois do 25 de Abril, num período marcado pela divulgação do conceptualismo, realizada por Ernesto de Sousa (1921-1988), que estimulou a desmaterialização das práticas artísticas expandindo-as à instalação ou à performance.
Alguns dos poetas da atual exposição colaboraram com os clássicos da Po.Ex, sobretudo a partir de ‘Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa’, exposição itinerante que passou por Lisboa, Torres Vedras, Coimbra e também por Évora, onde esteve na galeria Municipal de Arte, de 5 a 26 de Maio de 1985. ‘Poemografias’ foi organizada por Silvestre Pestana, que colaborou na Po.Ex ainda antes da revolução, e por Fernando Aguiar, que se tornou depois o responsável pela organização de exposições e festivais desta poética, sendo um importante divulgador nacional e internacional. Aguiar é um dos curadores de ‘Palavra Explícita, Oculta Palavra’, onde expõe três pinturas, unidas pela presença de uma régua articulada, que as mapeia com outros registos gráficos; apresenta ainda originais livros de artista, destacando-se um conjunto de cinco livros, cada um configurando uma letra da palavra livro. A sua poética explora não só o potencial da palavra plástica, mas também recorre a fonemas ou letras, expandindo-os em termos performativos, como foi possível ver no Video Box, onde projetaram registos das suas performances.
Igualmente, Armando Matracão expõe pinturas conceptuais onde cria lúdicos jogos entre títulos, palavras pintadas e configurações em metamorfose com superfícies topográficas de um cromatismo vibrante. Emerenciano, o autor das conhecidas ‘escritopinturas’, expõe telas onde retratos de figuras desenhadas a duas cores, se conjugam com estruturas retangulares preenchidas com caligrafias simulando caixas de texto, em sintonia rítmica com embalagens de medicamentos coladas, num todo que remete para páginas de imprensa, mas no caso só se podem ver. Emerenciano também está representado com originais livros de artista, dos quais se destacam os construídos com a ‘arte do carimbo’.
Manuel Almeida e Sousa recorre à assemblage para construir poemas visuais impressos em papel, estando exposto uma série que vive da tensão surrealizante entre palavra e imagem. O autor mostra também dois singulares livros-objetos negros, um com a forma de caixa aberta, o outro embrulhado com uma corda em redor, remetendo para ‘O enigma de Isidore Ducasse’ (1920) de Man Ray. Sendo um homem do teatro, Almeida e Sousa no momento de evocação de José Alberto-Marques, falecido recentemente, contou-nos como o conheceu, ao participar com os seus colegas do Conservatório Nacional, no espetáculo ÂNIMA (1977), onde poemas visuais da Po.Ex foram encenados pelo brasileiro Seme Lutfi (1946-1999) e por Silvestre Pestana. No Vídeo Box deste ano, foi ainda possível ver um vídeo com a experimentação fonética de Almeida e Sousa, onde atuava acompanhado por um instrumento de sopro aborígene.
Também no Vídeo Box se projetaram registos de performances do curador Feliciano Mira, realizados em parceria com Brenda Segura. Mira marca presença na exposição com livros de artista compostos por livres registos caligráficos e pinturas em papel, onde as caligrafias constroem mapas, uma vez que a associação das suas formas e cores permitem seguir diversos percursos com o olhar. Apresenta ainda ‘Imposit’, um objecto tridimensional onde o grafitti dialoga com letras e moldes de palavras do poema ‘O Menino Ivo’ de Salette Tavares.
No Vídeo Box deste ano visionou-se também ‘Ego Ego 1’ (1986), uma surpreendente obra do período analógico dos madeirenses António Dantas e António Nelos (1949-2018): composto pela sobreposição de imagens em movimento com forte cromatismo hipnótico, ritmadas num persistente ostinato que remetia para o batimento cardíaco, o vídeo tem um efeito invasivo e até perturbador, devido a ser um audiovisual extremamente corporal ou multissensorial. Por seu turno, os poemas visuais de ambos, situam-se numa linha política que em muito deve à poesia visiva italiana, uma vez que se apropriam de material dos meios de comunicação para os desconstruírem criativamente e de forma critica. Nesse sentido, foram influenciados por António Aragão, que nas suas electrografias dos anos 80, manipulava materiais gráficos com a máquina fotocopiadora, para criar poemas satíricos que viviam de imprevisíveis relações entre palavra e imagem.
António Nelos marca presença com três poemas verbo-visuais dos quais se destaca ‘Li Ver Da De’ (1987), onde a translação de uma imagem remete para a clássica tragédia ‘Édipo Rei’ de Sófocles. António Dantas mostra uma instalação onde imagens fotográficas constroem narrativas visuais, estando impressas em tiras verticais de acetados, dispostas de forma a aparentar fragmentos de pelicula de filme, sobrepondo-se na transparência a um plano anterior onde surgem palavras impressas, que se revelam ou ocultam no movimento de aproximação ou distanciamento do olhar.
César Figueiredo apresenta algumas afinidades estéticas com os poetas madeirenses, uma vez que recorre à electrografia para compor poemas. Partindo também da apropriação de material gráfico diverso, Figueiredo aproxima-se de imagens e textos através da fragmentação e ampliação, em composições onde joga com a sobreposição dos elementos, resultando poemas palimpsestos gráfico-verbais, que vivem de tensões entre a legibilidade/ilegibilidade. César Figueiredo marca ainda presença com um original conjunto de livros de artista apelidados de ‘Relicários’, que remetem assim para o passado sagrado e histórico dos livros artesanais.
Em sintonia com os ‘Relicários’ de Figueiredo, os livros-objetos artísticos de José Oliveira referem-se à própria origem do objeto livro, nomeadamente, aos Códices que eram compostos por papiros ou pergaminhos dobrados e costurados, e albergaram os textos religiosos a partir do século I d.C. Nos seus Códices, Oliveira contrasta o ritmo da escrita manual com aspetos epidérmicos das páginas, numa intemporalidade própria do contemporâneo que é antigo em simultâneo. Expõe também ‘Diário de Sinónimos’, um livro-mundo composto por páginas circulares, onde lado a lado se encontram superfícies texturadas com a alquímica presença de ferrugem e rastros de escritas em registos gráficos depurados. Marca ainda presença com um conjunto de pinturas fragmentadas, onde conjuga superfícies matéricas com escrita manual ilegível, acompanhadas de títulos poéticos. O autor, que também é músico, na inauguração brindou-nos com a performance ‘Sou som’, onde construiu um retrato sonoro do espaço, ao repercuti-lo com um pequeno prato metálico chinês, fazendo ainda marcações a giz em alguns pontos, onde lançou bolas de ping-pong.
Em ‘Palavra Oculta, Explicita Palavra’ estão presente obras de Antero de Alda (1961-2018), nomeadamente, uma assemblage que data de 1987, e dois poemas de carácter político mais recentes. Sendo um pouco mais jovem, seria importante divulgar numa próxima edição da Évora Experimental, os seus videopoemas em animação, uma vez que faleceu novo, mas desenvolveu uma original obra de poesia electrónica.
Também um pouco mais novo, Manuel Portela apresenta obras de grande rigor conceptual, onde utiliza novas tecnologias para criar poemas, sendo exemplo o seu livro exposto ‘Nuvens passageiras’, cujos poemas foram construídos com uma aplicação que metamorfoseou textos diversos, com conteúdos que remetiam para fenómenos voláteis ou efémeros, num processo combinatório onde os estruturou em quatro partes. Na apresentação do livro, Portela referiu que pretende realizar uma instalação com os poemas que o compõem. No Vídeo Box, marcou presença com ‘Almost imperceptible delays and lags’ (2024), obra que percorre a história das tecnologias: no ecrã vai surgindo a escrita de um diálogo à máquina, depois e sem imagem, ouvimos apenas o seu som gravado, seguindo-se o diálogo em audiovisual, e por fim temos a presença de avatares com interferência da inteligência artificial, questionando-nos assim sobre o impacto das tecnologias na comunicação.
Na exposição podemos ainda ver os belíssimos cartazes de Jorge dos Reis, impressos em serigrafia para a Évora Experimental deste ano, expostos ao lado dos desenhos que os originaram, revelando assim um pouco do seu processo criativo. Por fim, recomendo a consulta do Arquivo Digital da Po.Ex, projeto da Universidade Fernando Pessoa do Porto, da responsabilidade de Rui Torres, uma vez que podem conhecer melhor as obras dos autores da exposição em https://po-ex.net/