Foi no dia 2 de Junho de 2021, na livraria Tigre de Papel em Lisboa, com o Ricardo Marques apresentamos o livro de Miguel Serras Pereira. Estavamos ainda em desconfinamento pandémico, no tempo das máscaras, podem ouvir em posdcast aqui. Nesta sessão li o seguinte texto:
Li «À Tona do Vazio & reprise» durante o último confinamento, e o poeta Miguel Serras Pereira, que conheci pessoalmente agora, desafiou-me a estar aqui por ter partilhado no Facebook uma pequena nota de leitura. A nota começava assim:
“Em boa hora foi publicada esta antologia que reúne poemas escritos entre 1969 e 2019, excepto três poemas anteriores, segundo indicação do autor na abertura. No entanto, a nota do autor e o prefácio de Emanuel Cameira só li no fim. Fui directa aos poemas, sem ligar à estrutura do volume, que inicia com um conjunto de inéditos, seguindo-se uma seleção de poemas dos seus anteriores livros. Mergulhei de cabeça nos poemas e deixei-me levar, marcando as páginas onde queria voltar, alguns partilhei-os, cada vez tinha mais páginas marcadas e depois andava para a frente e para trás. “
De facto, não tenho o hábito de ler os prefácios nos livros de poesia, tornam-se sempre posfácios, vou directa aos poemas e depois fico por lá ou não. Apercebi-me da estrutura do livro, que inicia no fim da ordem cronológica, e avança em direcção à poesia do passado do autor, quando já ia bastante adiantada na leitura. Também porque durante o confinamento falei no Messenger com o Ricardo Marques, que me enviou a sua recensão crítica ao livro, depois publicada na Colóquio Letras. Na altura disse ao Ricardo que não entendia as referências ao Renascimento descritas no texto, mas tinha sentido que o autor era antigo e moderno em simultâneo. Por exemplo, na página 148, o poema “Talvez um barco”, vi que tinha a estrutura de um soneto, mas reinventada livremente. Não tenho competências para analisar formalmente os poemas, para além de achar que é redutor, porque como diria a poeta e ensaísta Salette Tavares (uma das minhas autoras favoritas): “A obra de arte não é um pastel de massa tenra em que se possa separar o exterior aparente da carne que constitui um recheio” (in «Os efes». E.M. de Melo e Castro, José-Alberto Marques, “Antologia da poesia concreta em Portugal”, Assirio & Alvim, 1973, p.122). Um bom poema é sempre forma e conteúdo, é criação de um todo ou novo «Cosmos».
Existe uma característica na poesia que me seduz muito na leitura, é possível na experiência estética de um poema ver a superfície textual antes ainda de ler, podemos observar como se desenvolve a mancha do texto na página, que é variável ao contrário de uma monótona e linear prosa escrita. Este aspecto relaciona-se também com a capacidade de síntese desta arte, uma vez que a sua forma estética permite condensar uma enorme quantidade de informação. Aquilo que num ensaio ou numa narrativa se desenvolve em páginas e páginas de forma extensa, num bom poema existe brevemente, num instante denso que foca e exige uma grande concentração por parte do leitor. Creio que é uma das qualidades desta arte maior e mágica das palavras que é a poesia, a síntese e a sua capacidade de condensar informação e surge com uma pequena escala, bem mais pequena que num ensaio ou numa prosa. Escala essa talvez mais humana, se é que se pode apelidar assim. Tenho mais empatia por um estudo de Chopin com a sua forma breve e intensa, do que com uma ópera de Wagner que são horas e horas de música com efeitos especiais para o público não adormecer a meio, com toda aquela complexidade mitológica para a eternidade. Confesso que as obras megalómanas me assustam. Apesar de não se poder comparar fenómenos tão díspares, onde é possível entender e ver as características e qualidades diferentes, sinto-me mais próxima de obras com escalas mais humanas, de que é exemplo este livro que reúne cinquenta anos de poesia de Miguel Serras Pereira.
Ainda em relação à leitura de poesia, gosto de pegar num livro, abri-lo ao calhas, ver e ler um poema e depois deixá-lo a ressoar interiormente, fico a disfrutar da leitura, e quando o poema fica ressoar, tenho vontade de o voltar a ler. E isso aconteceu neste livro que nos reúne aqui hoje. Em “À Tona do Vazio & reprise” encontrei-me com raros e belos poemas de amor que nunca descabam em sentimentalismos, pelo contrário, li poemas onde Eros e Thanatos viajam de mão dadas, canções de amor e morte onde senti a voz de um trovador muito antigo e moderno em simultâneo. Em todos estes poemas encontrei um trabalho de linguagem muito cuidado e rigoroso, onde lúdicos jogos fono-semânticos muitas vezes extravasam estruturas clássicas com uma moderna liberdade livre, numa lírica sempre elegante e temperada de intemporalidade. Talvez por isso andei às voltas enquanto viajei no livro, voltava atrás na leitura enquanto seguia em frente sem me cansar. E quando o terminei de ler sabia que sempre que me lembrar dalgum poema deste livro vou voltar a ler e a ler e a ler.