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Da Natureza (2009)

A história desta antologia, organizada pela Sara Monteiro em 2009, intitulada ‘Da Natureza’ e publicada pela Fundação de Odemira foi uma experiência inesquecível. Conhecia a Sara das suas colaborações na Big Ode, também tínhamos publicado em antologias de Micro-ficção. Para ‘Da Natureza’ enviei-lhe um contou mais extenso que o habitual, uma ficção onde uma cantora lírica estabelecia um diálogo interior com a paisagem alentejana, ao rumar de carro em direcção ao sul, sendo também uma viagem na memória terminando na infância. A Sara sabia que sou alentejana e pensou que era um relato autobiográfico, por isso, lembrou-se que eu poderia dar boleia a partir de Lisboa ao Rui Costa, meu compagnon de route no blog Insónia do Henrique Manuel Bento Fialho e também da revista Big Ode. Quando havia lançamentos da revista no Gato Vadio, onde nos encontrávamos com vários autores do Porto, o Rui era sempre o nosso cicerone na vida nocturna. Para o lançamento da antologia em Odemira, depois de informar a Sara que não tenho carta de condução, apanhamos boleia com a Risoleta C. Pinto Pedro. O ponto de encontro foi a António Arroio onde a Risoleta era professora de português. Fui aluna nesta escola de arte, não ia lá desde 1987, foi um local intenso de descobertas na juventude. Quando cheguei à porta, ao ver o grafitti AMO-TE, com o piloto automático puxei de um cigarro. Veio logo um funcionário dizer que era proibido fumar, respondi que estava ao ar livre, o segurança mandou-me sair da escola. Tive de fumar fora do portão da entrada, a recordar o mundo diferente onde vivi. Na minha juventude existia a alameda das ganzas no interior da António Arroio, um corredor na cave onde partilhava charros com a professora de desenho e não só. Depois apareceu o Rui Costa e fomos de carro guiados pela Risoleta em direção a Odemira. O Rui era excelente contador de histórias, relatou-me no caminho um namorico na adolescência com uma miúda de Évora: conheceram-se em férias no Algarve e quando o Pai dela os apanhou aos beijinhos, deu-lhe um estalo à sua frente dele, o que o deixou estupefacto. O Rui era um espírito livre e entendia bem a repressão da sociedade tacanha portuguesa. Tive sorte com a família que me calhou na rifa, isso nunca me aconteceu, mas conheço histórias violentas e horríveis da cidade branca das muralhas, nem me quero lembrar da adolescência que tive em Évora. Tenho imensas saudades do Rui, partiu cedo demais. Voltando ao encontro em Odemira, foi um óptimo convívio com os autores, lembro-me que me chamaram escritora e me deu uma enorme vontade de rir. O conto da antologia era escrita de pintora, funcionava como uma sequência de imagens. Lembro-me de explicar à Sara que era auto-ficcional, o que havia de auto-biográfico era o final: em criança, segundo relatos dos meus irmãos, acreditava que o eco era uma pessoa real que estava escondida a repetir o que dizia. O conto era uma história inventada a partir desta verdade, com base em histórias que conheço bem, não deixa de ser também mentira. Para pregar uma boa mentira ou escrever um conto, tem de haver verosimilhança (Diderot), um fundo de verdade na narrativa que se constrói. Vou estar sempre grata à Sara Monteiro ter-me desafiado a publicar nesta antologia por guardar na memória a vivência, a partilha com enorme carinho.

 

Podem ler o conto incluido nesta antologia aqui

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Big Ode #3 (Nov 2007-Fev 2008)

A ‘Big Ode #3’ (Nov 2007- Fev 2008), grande aventura do Rodrigo Miragaia, também com Sara Rocio foi dedicada à Fusão. Nas suas páginas publiquei prosas poéticas em diálogo com imagens. Recordo o lançamento em Almada, fui de boleia com amigos e andamos de noite a chover às voltas até encontrarmos o local. Foi um encontro entre artistas e poetas como todos os lançamentos da revista, onde também partilhamos os textos publicados oralmente: li o ‘Tango’ e não foi nada fácil, passei a treinar as leituras antes de qualquer apresentação em público. É mais difícil ler um texto que escrevemos em público, porque o conhecemos, do que um texto de outro autor. Podem ler o ‘Tango’ aqui.

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Ilustração de poema de Daniel Falb

***
 
uma natureza morta social com traço de vermeer,
                            o professor de piano dedilhava

uma menina de quinze anos especialmente doce, aos domingos
                     passeios de família nos arredores e ainda
a puberdade. mais tarde esta masturbação transforma-se em amor
                         e uma terna veneração por juliette
binoche, as estações passam desapercebidamente,
                                       o que é péssimo,
e às vezes o estudo «revolucionário» de frédéric chopin,
                      nova dedilhação, mas os mesmos erros.

 
Daniel Falb, ” Naturezas-mortas sociais: 33 poemas” (tradução de Pedro Sena-Lino e Tiago Rocha de Morais), p.37. A ilustração não foi publicada no livro.
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Weather Forecast

Acreditar na vida como
acreditamos no boletim
metereológico de todos os dias.
Apesar de todas as previsões,
fundamentadamente científicas,
há sempre uma variável que não
controlamos. E por isso temos
esperança e desconfiamos. E tal
como toda a gente, aprendemos
que há que saber sair de casa
esquecendo deliberadamente o
guarda-chuva.

Ricardo Marques, ‘Eudaimonia’ (2012). Lisboa: Edição de Autor.

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Micro-Ficções 2007

Em 2007 fui incluida na antologia ‘Contos de algibeira’, organizada por Laís Chaffe, Casa Verde, Porto Alegre (Brasil). No ano seguinte participei na ‘Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa’ (2008) organizada por André Sebastião e Rui Costa, Exodus, Vila Nova de Gaia. Publiquei em ambas as antologias devido a colaborar no Blog Insónia do Henrique Manuel Bento Fialho, autor do prefácio da antologia portuguesa, e onde o poeta Rui Costa também era compagnon de route. Nos ‘Contos de Algibeira’ publiquei um texto em homenagem à gata Lua, com vista à sua internacionalização. Recordo o lançamento em Lisboa ser no Frágil, abriram o espaço de propósito num fim de tarde para o evento, não entrava lá desde os anos noventa. Na ‘Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa’ foram publicadas algumas prosas diarísticas postadas no Blog do Henrique e não me recordo de ir a lançamento. O registo da micro-ficção estava bastante presente na blogosfera, no período em que os blogs andavam em alta, talvez por se adaptar ao próprio formato das páginas virtuais da altura.

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Apontamentos #1

“Devemos fazer a distinção entre mistério e segredo. Há o mistério da morte, mas este mistério caracteriza-se pelo facto de não ser um segredo, como há o segredo da bomba atómica, o segredo da pedra filosofal, o segredo dos violinos Stradivarius, etc. Os homens são muito ligados a este género de segredo. Porém, ninguém tem o segredo da morte. Não há segredo. Não é um segredo e é nisso que a morte é um mistério. Ou seja, é um mistério em pleno dia, tal como o mistério da inocência. É um mistério que está na transparência, no próprio facto da existência. Diz-se, por exemplo, que o que há de mais misterioso não é a noite profunda, mas sim o pleno meio-dia, o momento em que todas as coisas são apresentadas na sua evidência, onde se desnuda o próprio facto da existência das coisas. O facto de estarem lá é mais misterioso que a noite, que desperta dos pensamentos de segredo. Um segredo descobre-se, mas um mistério revela-se e é impossível descobri-lo.”

 

Vladimir Jankélévitch, «O Irrevogável: conversa com Daniel Diné» (1967), “Pensar a Morte”, trad. de Joana Patrício Rosa (2003). Mem Martins: Editorial Inquérito.

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Caderno de desenho (2007)

Como já tinha referido anteriormente, na Big Ode #1 (Março 2007) o Rodrigo Miragaia publicou um texto a acompanhar imagens dos meus livros a preto e branco.  Deixo aqui o texto:

Caderno de desenho

Os cadernos de desenho são objetos. Contêm memória. Contêm tempo. Neles podem ficar registadas as nossas impressões e os nossos reflexos mais ou menos espontâneos. Podem ser o local ou o registo mais primário, depois da nossa própria mente, porque não tem que ter o caráter expositivo que têm outro tipo de atividades ou comportamentos (artísticos ou não) que nos trazem outro tipo de compromissos. Os cadernos de desenho correspondem ao momento em que transformamos as sensações em significados, ao momento em que traduzimos as ideias em símbolos ao momento em que fazemos opções. É nele que se escreve, desenha, pinta ou cola a nossa história. Uma identidade possível.

Diário de viagem, diário de bordo, caderno de esboços, livro de memórias. Se muitas vezes os cadernos de desenho servem apenas como meio para atingir um fim, noutras eles servem um fim em si. Existem palavras e imagens soltas que não têm outro lugar senão num caderno. Mas, pensando, sentindo e registando dedicadamente, existem autores que transformam os seus diários em obras plásticas, com forte sentido estético, coerência e carga emotiva. Obras plenas de histórias, sensações e génio.

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The Last 69…Complete 1997-1999

Na Big Ode #1 (Março 2007) como já tinha aqui referido, colaborei com uma entrevista ao poeta experimental César Figueiredo e também publiquei um texto sobre as suas worm produtions, originais edições que seguem o espírito das interdisciplinares fluxkits, utilizando o potencial da copy-art, aliada também à apropriação de objectos na criação de múltiplos. No entanto, o meu texto foi escrito ainda no século passado, e a propósito de ‘The Last 69…Complete” (1997-1999), onde foi incluido um micro-livro com fragmentos dos meus textos visuais. Deixo-vos aqui o texto:

#69

Uma imagem pode ser a representação de formas no espaço, um fragmento da realidade. Pode também ser a apresentação de formas no espaço-tempo, uma articulação de fragmentos da realidade. Em todo o caso, é suspensão do tempo num espaço que o aprisiona, em paralelo ao tempo que está a decorrer.

Uma sequência de imagens materializa, de certa maneira, o tempo que decorre numa contínua suspensão do tempo em espaços sucessivos. Esta suspensão em movimento assemelha-se mais ao mistério sequencial que o tempo contém.

O livro é um dos objetos que melhor se aproxima deste mistério, mas de um modo pausado, num tempo que corre devagar. Ele pode conter palavras, imagens, palavras- imagens, grafismos, cores manchas, odores, texturas… que se podem ler, percepcionar, cheirar, sentir, percorrer e interiorizar num tempo próprio.  O tempo de um livro pode ser tocado: os nossos dedos permitem a mudança de espaços no tempo que decorre, o movimento que ele nos revela. O folhear das páginas é o som de um objeto vivo.

Os livros da série 69 convidam-nos a tocar o tempo próprio de cada um deles contém. São objetos intimistas, quase cabem dentro de uma mão. Eles guardam a comunicação que César Figueiredo estabelece com outros autores, situada numa rede planetária de artistas e não-artistas conhecida por worm group. A esta rede ele propõe um jogo: que lhe enviem material para a edição destes livros. O material é apropriado e manipulado, posteriormente, usando as potencialidades da tecnologia eletrográfica. Este meio permite-lhe aproximar-se de imagens e textos através da fragmentação.

Os fragmentos são aspetos que estão abafados no contexto de um todo, que César Figueiredo descontextualiza e organiza sob a forma destes micro-livros. Cada página é um detalhe revalorizado, que nos surge num contexto sequencial, onde vários pormenores se interligam no folhear. O resultado do jogo são invólucros de carga energética de um sistema interativo, que o autor celebra com outro autor. Nos casos em que a fragmentação não tem um papel preponderante, o sistema de interação resulta mais de uma sintonia temática e/ou troca de ideias num processo de empatia. Em alguns casos, César Figueiredo aparece como autor ele próprio, numa reorganização do seu trajeto. Mesmo deste modo, ele é um autor por via de outrem, como em todos os livros, no sentido em que cada um é a reestruturação de um discurso. As worm prodution’s são assim um sistema interactivo.

As páginas destes livros funcionam como encaixes de vestígios de um enigma. São um pouco como o puzzle em que nos inserimos: encontram-se ou desencontram se peças num todo que está sempre incompleto.

César Figueiredo e AA.VV.  ‘The Last 69…Complete” (1997-1999)’, caixa de cartão com 10,5 x 13 x 8 cm,  alberga 69 micro-livros, cada um mede 10,5 x 7,5cm. Worm produtions, Porto.

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Pombos Lerdos (2018)

Em 2018 participei numa plaquette publicada na Medula organizada por manuel a. domingos, com uma micro-ficção sobre  a ‘Panorâmica’ que deu origem mais tarde à série de pinturas  realizadas durante a pandemia. Esta ‘Panorâmica’ só a terminei em 2020, quando mudei de casa. Por vezes acontece largar trabalhos criativos a meio e terminá-los mais tarde, quando a vida o permite. Deixo-vos aqui o texto ao lado da pintura, que coabita comigo: 

 

Concerto nº2

Já vos contei que pinto coisas que não sei o que são, mas acho que as consigo ver? Hoje estive de volta de uma panorâmica com a sede do banco central europeu em pano de fundo. A polícia de choque avança na paisagem e na vanguarda, um oficial fardado a rigor aponta a arma para um cachaço de bovino e três postas de salmão. Carne ou peixe, só fauna numa paisagem sem flora. Ao fim da tarde parei para ouvir o anjo Evgeny Kissin a tocar Rachmaninov. Voltei a olhar a panorâmica humana em construção e concertei-a pintando uma aura em torno da carne. Olhei de novo o polícia a disparar sobre o que já está morto, parece uma sombra. Está frio. Agora vou jantar sopa quente e rica em proteína vegetal.

'Panorâmica 2018-2020', colagem e óleo sobre tela, 30x80cm
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Panorâmicas 2020-2021

Conjunto de pinturas pandémicas em formato panorâmico na sequência da série ‘Naturezas-Mortas Sociais’ (2012-2014). Algumas estiveram expostas no Centro de Documentação da Câmara Municipal de Lisboa. A exposição foi organizada por Cláudia Domingues e decorreu entre 7 de Julho e 31 de Agosto de 2021. Foi ainda muito bem acompanha no catálogo pelo seguinte texto:

VANITAS EN ABYME

Se por panorama temos a ideia do dicionário de um “grande quadro circular ou cilíndrico disposto de modo que o espectador, colocado no centro, veja os objectos representados como se estivesse numa altura, dominando todo o horizonte em volta” os novos quadros de Maria João Lopes Fernandes (MJLF) acertam em cheio no seu título. Não serão cilíndricos estes quadros rectangulares, mas são circulares no sentido do que pretendem retratar: são panorâmicas de panoramas sociais imaginados pela pintora, onde os elementos justapostos são os do nosso quotidiano – como a comida e as flores o são na tradicional natureza-morta. 

Já sabemos que este é um tema caro à pintora, que o tem sabido pensar, expôr e desenvolver ao longo da última década, mostrando assim que o género está mais vivo que morto apesar da natureza do seu nome, e que permite contaminações contemporâneas, como a da colagem. Como se o óleo não desse já o tom e não fosse suficientemente impactante por si só, é frequente encontrar aqui e ali traços reais, retirados de jornais e de outros suportes em papel, de figurações e cenas vivas da nossa vida, dando uma textura por vezes palpável a estas telas, ao nosso tempo ali cristalizado. 

E mais do que a indiscutível virtuosidade da técnica, que a remete para o seu passado histórico-académico, o que acaba por ganhar primazia e se destaca claramente são os elementos escolhidos, o choque que a sua disposição quer, porque pode, provocar: e essa é uma forma inteligente de actualizar a ideia-conceito por parte de MJLF. Essa metamorfose política do carácter plástico da natureza-morta justifica-se desde logo quando lembramos que foi na literatura que este termo teve origem. Senão, vejamos: este sabão azul e branco, estes polícias e um ou outro fruto: que história pretende MJLF contar-nos que não a história dos nossos dias? Estes quadros podem ser vistos como pequenas narrativas do tempo recente (panorâmicas) cuja (anti-)chave está, porém, nos múltiplos caminhos da imaginação.

E chegado aqui pergunto-me se outra definição de panorâmica se poderia também aplicar: a do cinema. Lembremo-la: “Movimento ou plano cinematográfico em que a câmara se desloca rodando horizontalmente sobre um eixo fixo.” Não será este o movimento do próprio espectador quando se aproxima do quadro? Dito por outras palavras, que filmes fará cada pessoa que passar frente a estas telas? E se cinema é emoção, não despertarão estes quadros uma comoção, que é o passo imediatamente anterior à necessidade de agir (motio)? De resto, a ilusão de movimento (quase em trompe l’oeil) é, sem dúvida, um dos traços mais surpreendentes destes quadros.

Como esta exposição prova, então, a arte é realmente o domínio onde ainda tudo pode acontecer, neste tempo virtual de truculentas vanitas; onde o aparente oxímoro de um nome (natureza-morta social) não existe para excluir ninguém, querendo aliás mostrar como, pelo contrário, estamos todos incluídos e ligados ao nosso tempo pela arte nele criada: nas nossas histórias individuais e colectivas, nos nossos sacrifícios e crenças, na nossa luta diária por um mundo melhor.

Mostrando, no fundo, porque razão “The revolution will not be televised.” 

Ricardo Marques

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Apresentação de ‘À Tona do Vazio & Reprise’

 Foi no dia 2 de Junho de 2021, na livraria Tigre de Papel em Lisboa, com o Ricardo Marques apresentamos o livro de Miguel Serras Pereira. Estavamos ainda em desconfinamento pandémico, no tempo das máscaras, podem ouvir em posdcast aqui. Nesta sessão li o seguinte texto: 


Li «À Tona do Vazio & reprise» durante o último confinamento, e o poeta Miguel Serras Pereira, que conheci pessoalmente agora, desafiou-me a estar aqui por ter partilhado no Facebook uma pequena nota de leitura. A nota começava assim:


“Em boa hora foi publicada esta antologia que reúne poemas escritos entre 1969 e 2019, excepto três poemas anteriores, segundo indicação do autor na abertura. No entanto, a nota do autor e o prefácio de Emanuel Cameira só li no fim. Fui directa aos poemas, sem ligar à estrutura do volume, que inicia com um conjunto de inéditos, seguindo-se uma seleção de poemas dos seus anteriores livros. Mergulhei de cabeça nos poemas e deixei-me levar, marcando as páginas onde queria voltar, alguns partilhei-os, cada vez tinha mais páginas marcadas e depois andava para a frente e para trás. “

De facto, não tenho o hábito de ler os prefácios nos livros de poesia, tornam-se sempre posfácios, vou directa aos poemas e depois fico por lá ou não. Apercebi-me da estrutura do livro, que inicia no fim da ordem cronológica, e avança em direcção à poesia do passado do autor, quando já ia bastante adiantada na leitura. Também porque durante o confinamento falei no Messenger com o Ricardo Marques, que me enviou a sua recensão crítica ao livro, depois publicada na Colóquio Letras. Na altura disse ao Ricardo que não entendia as referências ao Renascimento descritas no texto, mas tinha sentido que o autor era antigo e moderno em simultâneo. Por exemplo, na página 148, o poema “Talvez um barco”, vi que tinha a estrutura de um soneto, mas reinventada livremente. Não tenho competências para analisar formalmente os poemas, para além de achar que é redutor, porque como diria a poeta e ensaísta Salette Tavares (uma das minhas autoras favoritas): “A obra de arte não é um pastel de massa tenra em que se possa separar o exterior aparente da carne que constitui um recheio” (in «Os efes». E.M. de Melo e Castro, José-Alberto Marques, “Antologia da poesia concreta em Portugal”, Assirio & Alvim, 1973, p.122). Um bom poema é sempre forma e conteúdo, é criação de um todo ou novo «Cosmos».


Existe uma característica na poesia que me seduz muito na leitura, é possível na experiência estética de um poema ver a superfície textual antes ainda de ler, podemos observar como se desenvolve a mancha do texto na página, que é variável ao contrário de uma monótona e linear prosa escrita.  Este aspecto relaciona-se também com a capacidade de síntese desta arte, uma vez que a sua forma estética permite condensar uma enorme quantidade de informação. Aquilo que num ensaio ou numa narrativa se desenvolve em páginas e páginas de forma extensa, num bom poema existe brevemente, num instante denso que foca e exige uma grande concentração por parte do leitor. Creio que é uma das qualidades desta arte maior e mágica das palavras que é a poesia, a síntese e a sua capacidade de condensar informação e surge com uma pequena escala, bem mais pequena que num ensaio ou numa prosa. Escala essa talvez mais humana, se é que se pode apelidar assim. Tenho mais empatia por um estudo de Chopin com a sua forma breve e intensa, do que com uma ópera de Wagner que são horas e horas de música com efeitos especiais para o público não adormecer a meio, com toda aquela complexidade mitológica para a eternidade. Confesso que as obras megalómanas me assustam. Apesar de não se poder comparar fenómenos tão díspares, onde é possível entender e ver as características e qualidades diferentes, sinto-me mais próxima de obras com escalas mais humanas, de que é exemplo este livro que reúne cinquenta anos de poesia de Miguel Serras Pereira.


Ainda em relação à leitura de poesia, gosto de pegar num livro, abri-lo ao calhas, ver e ler um poema e depois deixá-lo a ressoar interiormente, fico a disfrutar da leitura, e quando o poema fica ressoar, tenho vontade de o voltar a ler. E isso aconteceu neste livro que nos reúne aqui hoje. Em “À Tona do Vazio & reprise” encontrei-me com raros e belos poemas de amor que nunca descabam em sentimentalismos, pelo contrário, li poemas onde Eros e Thanatos viajam de mão dadas, canções de amor e morte onde senti a voz de um trovador muito antigo e moderno em simultâneo. Em todos estes poemas encontrei um trabalho de linguagem muito cuidado e rigoroso, onde lúdicos jogos fono-semânticos muitas vezes extravasam estruturas clássicas com uma moderna liberdade livre, numa lírica sempre elegante e temperada de intemporalidade. Talvez por isso andei às voltas enquanto viajei no livro, voltava atrás na leitura enquanto seguia em frente sem me cansar. E quando o terminei de ler sabia que sempre que me lembrar dalgum poema deste livro vou voltar a ler e a ler e a ler.

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Em cada encruzilhada

Em cada encruzilhada (2021). Colagem e aguarela sobre papel, 15x21cm.


Porque és a encruzilhada sempre a teu caminho
de todos os meus passos em cada encruzilhada

Miguel Serras Pereira

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Apresentação de ‘A Noite’

Foi no dia 24 de Junho de 2017, apresentei  A NOITE de Ricardo Marques, ao lado da Raquel Nobre Guerra que leu os  poemas na Livraria da ZDB.  Foi num  belíssimo fim de tarde onde li o seguinte texto: 

Tenho acompanhado a poesia do Ricardo Marques desde o seu primeiro livro, «Eudaimonia», para o qual contribui com a imagem da capa e ilustrações no seu interior. O Ricardo tem-nos habituado a um registo depurado e rigoroso, em livros bem estruturados, tal como este livro A NOITE. No entanto, este livro é um pouco diferente dos anteriores, porque apresenta uma maior diversidade formal. Essa diversidade realiza-se em torno de um tema, aliás, trata-se de variações sobre a noite, como indica o subtítulo, ou seja, este tema foi abordado ao longo do livro, mas de forma alterada, como acontece em termos clássicos numa composição musical. Este livro não é apenas sobre a noite, está estruturado como a própria noite, com as suas estâncias: inicia com o crepúsculo, existe uma meia-noite e um chiaroscuro ou amanhecer.

O Ricardo Marques neste momento tem uma exposição de colagens no edifício da Câmara Municipal de Lisboa em Entrecampos, que vos aconselho a visitarem, para conhecerem o que está a desenvolver com este processo em termos visuais. Nas colagens visuais, ele apropriou-se de material gráfico diverso, estabelecendo relações imprevisíveis com elementos encontrados, rasgados e escolhidos, aos quais atribuiu um novo sentido, através da «cola mágica», que é uma ideia que está presente na origem etimológica da palavra «collage» (no francês). Em a NOITE, também utilizou este processo na construção de poemas, muitos deles resultam de colagens intertextuais e têm uma coordenada visual. Ao longo do livro, o Ricardo Marques vai estabelecendo diálogos com outros autores, como a poeta Safo, voz feminina da antiguidade e originária da ilha de Lesbos na Grécia; ou com a fotógrafa Nan Goldin, cuja obra a partir dos anos setenta, eternizou seres humanos que vivem e trabalham na noite, na cultura underground de Boston e Nova York. Deparamos também com vários encontros ou referências a poetas como Rilke ou Maley Hopkins, com pinturas de Magritte, Rembrant, Edward Hopper, e sobretudo com músicos como Tom Waits, Pati Smith, PJ Harvey ou Elodie Lauten.

As referências musicais preponderam ao longo deste livro nocturno: logo no início surge um poema onde aborda a sombra e o anjo negro que é a noite, relacionado com um fragmento da letra de «La Folie» dos «The Stranglers». Esta preponderância de encontros musicais deve-se, a meu ver, à relação intrínseca que existe entre noite e a música. Nietzche em «Aurora» escreveu um aforismo onde caracterizou a música como a arte da noite e da penumbra, devido ao ouvido ser o órgão do medo, o que o torna menos necessário à luz do dia. A visão é um sentido nobre e diurno, Apolínio digamos, que se anula no escuro da noite, onde a música se faz e escuta melhor. Na noite, o império da audição afasta as outras percepções sensoriais. A música, que é da ordem do invisível, invade os corpos de quem a escuta, instala-se no seu sistema nervoso e nas funções vitais, elegendo a intimidade dos auditores como domicílio. O som tem um carácter invasivo que não existe na imagem, porque no nobre sentido da visão está sempre implícito uma distância ou ponto de vista. A audição da música, pelo contrário, pode mesmo provocar estados de transe, onde o sujeito deixa de ser ele próprio, também através da dança. A música tem um carácter dionisíaco.

 Paira assim um fantasma sonoro neste livro, mas ele está presente através de palavras de canções, que se acendem na noite e funcionam como uma claridade no escuro. As palavras das canções surgem conjugadas com palavras do Ricardo Marques, abordando sensações dos corpos na noite, o amor, assim como o tempo que passa ou a insónia. Aliás, grande parte dos poemas deste livro tem uma coordenada visual, onde os versos estão dispersos na página, surgindo como pequenos pontos luminosos na noite, que remetem para constelações. Num dos primeiros poemas onde isso acontece, a palavra penumbra surge destacada e desconstruída, conjugada com os restantes versos e com a palavra “luz”, também em destaque, que ao formarem um ideograma permite um jogo de leituras, através das várias direcções e combinações das palavras e versos.

A coordenada visual destes poemas nocturnos remetem para a liberdade compositiva de Stéphane Mallarmé em «Un coup de dés jamais n’abolira le hasard» (1887) – «Um lance de dados jamais abolirá o acaso», como traduziu Armando da Silva Carvalho em português, na editora Relógio d’Água. Nesse lance de dados, o poeta simbolista francês utilizou versos livres, dispersando-os sobre a página e valorizou os espaços em branco entre as palavras e em torno delas para formar ideogramas. A pontuação dos versos foi assim substituída pelo branco da página, tornando-o um elemento primordial na organização rítmica, tal como acontece com as pausas na música. Constelação é também uma palavra presente e em destaque no final de «Un Coup de dês», uma palavra-imagem que foi muito utilizada para classificar este tipo de composições. Num fragmento de uma carta a um amigo, Mallarmé afirmou que nesse poema desejava que os caracteres das palavras fossem bastante apertados, para se adaptarem à condensação dos versos, mas também que existisse ar entre eles, espaço para se distinguirem uns dos outros, com zonas de descanso para não serem lidos de uma só tiragem ou esticão.

Mas nem todos os poemas deste livro A NOITE formam constelações. Perto do meio da noite encontramos um bloco de prosa poética que aborda a passagem do tempo; surge também um poema figurado, num diálogo que o Ricardo Marques estabelece com «O império das luzes» (1949) de Magritte, antes da «Insónia de Manley Hopkins» e já perto do chiaroescuro (estou a situar assim o poema, porque não se encontram numerados ou com números de página no livro). As estrofes do poema «Imaginez la nuit, mon ami Magritte» encontram-se alinhadas na vertical, remetendo para a forma de um candeeiro presente nesta pintura, onde Magritte de forma paradoxal conjugou a noite e o dia numa só imagem. Este poema figurado remete para os «Calligrames» (1916) de Apollinaire. E para terminar, penso que este livro A NOITE, se pode apelidar de pequeno álbum de constelações, e espero que gostem de ler e também de ver as palavras destes poemas a brilhar no silêncio da página, tal como se observassem um céu estrelado na noite.

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Natureza-Morta Social (Janeiro 2014)

Colagem e óleo sobre tela, 110x170cm.

No dia 26 de Janeiro de 2014, o Papa Francisco lançou duas pombas pela paz na Ucrânia na Praça de S. Pedro.  Na altura, tinham sido mortos manifestantes que se encontravam em protesto na  Praça Maiden em Kiev.  No Vaticano,  as pombas pela paz foram atacadas por um corvo e uma gaivota. As imagens impressionaram-me muito, por isso, utilizei-as na construção de uma pintura da série ‘Naturezas-Mortas Sociais’. No ano anterior, o Papa Bento XVI também lançou uma pomba pela paz a 27 de Janeiro no mesmo sítio,  e foi atacada por uma gaivota. Depois destas situações, o Papa Francisco passou a lançar balões em vez de pombas brancas, pela paz no mundo, sempre no mês de Janeiro na Praça de São Pedro. Agora temos um mundo com duas guerras atrozes, surgiram logo após a pandemia Covid-19.  Peste, fome, guerra e morte, estão de volta os quatro cavaleiros do apocalipse. 

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Big Ode #2, 2007

A ‘Big Ode #2: Poesia e Imagem’ (Julho 2007) foi uma edição especial em forma de caixa e teve 150 exemplares. Com o tema ‘A Viagem’ os autores participaram enviando material em suportes diversos e incluiu um CD dos Ventilan, gravado em estúdio pelo Fernando Gomes. Recordo bem o lançamento na recém-inaugurada Fábrica de Braço-de-Prata, na altura as minhas esculturas ‘Babilónias’ estavam expostas numa parede na Sala Deleuze. Houve concerto dos Ventilan, onde fiz uma breve introdução: reencarnei na maravilhosa Mrs Florence Foster Jenkins em playback, fui vestida a rigor com asas de anjo e o som esteve a cargo do Luis Germano. Depois o Nuno Moura leu muito bem Boris Vian (aliás, foi uma tradução em português de ‘Je Suis Snob’) e o concerto teve como ponto alto a leitura de ‘A poesia dá dinheiro a Portugal’ com o Henrique Manuel Bento Fialho a dar tudo na guitarra. Além dos Ventilan, lembro-me de estarem lá a Margarida Chambel , o Miguel Rodrigues,  a Raquel Coelho, a Sara Franco, o Tiago Veiga, e não só. Como também houve concerto dos irmãos catita noutra sala, às tantas o Manuel João Vieira de viola em punho dedicou uma serenata à Sara Rocio. Não sei como o Henrique Matos, que se passeava com a capa de um single do Demis Russos a tira colo, convenceu o Manuel João a ir para o palco tocar piano e começou no microfone a dizer um longo poema do Tiago Veiga. Ele tinha apenas um papelinho tipo cábula na mão e como estava a fumar, colocou o cinzeiro no topo da careca. A Sara ao fundo da sala preocupada fazia gestos para ele não deixar cair o cinzeiro, volta e meia ele deitava lá cinza, sem parar de dizer o poema e aguentou-se até ao fim. Já às tantas da manhã, o Fernando Gomes brindou-nos com Piazzola no piano, outra surpresa inesquecível. Obrigada por esta viagem na memória Rodrigo, foi muito bom voltar a abrir a caixa do número 2 da bigode.