Categorias
Blog Sobre Arte Viagens

Hamburg: Março 2024 #3

Ainda sobre as pinturas de Caspar David Friedrich (1774-1840) que vi recentemente na exposição na Hamburger Kunsthalle, chamou-me a atenção duas pequenas paisagens intensas, onde representou a sua cidade natal. Friedrich nasceu em Greifswald, na Pomerânia Ocidental, cidade portuária no mar Báltico, que na altura pertencia à Suécia. Dado curioso sobre este romântico alemão, estudou pintura na Academia de Copenhaga e só a partir de 1798, se fixou em Dresden, na Alemanha. Em ‘Greifswald ao luar’ (1817) com apenas 22,5×30,5 cm, representou a sua cidade natal vista a partir do mar, onde no primeiro plano aquático se vislumbram rochas e uma embarcação à vela. Os pináculos das igrejas surgem depois por trás de um conjunto circular de redes de pesca, aparecendo como uma ilha ao luar, devido à indefinição do ambiente aquático e atmosférico nocturno. A segunda pequena pintura intitulada ‘Prados junto a Greifswald’ (1821-22) tem 34,5×48,3 cm, apresenta uma vista diurna e verdejante, onde a cidade recortada mantém o carácter insular, mas num ambiente térreo e bucólico, vivendo do contraste entre o verde dos prados onde se insere com um perfil azul-cinza, em conflito também com o amarelo-pálido da atmosfera. O que leva um pintor a representar a sua cidade natal como uma ilha quando é um porto na realidade? A memória e a imaginação de um olhar adulto estão presentes nesta sua ideia de paisagem emocional. O meu olhar que também vê com a imaginação e a memória, remeteu-me para a ilha da infância ao encontrar na apolínea paisagem verdejante um solar paraíso. Pelo contrário, mergulhei numa dionisíaca melancolia na sua visão nocturna, onde num ambiente aquático se vislumbra uma fantasmática cidade lunar, com a tristeza da infância-ilha perdida e distante.

Categorias
Blog Sobre Arte Viagens

Hamburg: Março 2024 #2

Como vos tinha contado, em Março visitei a exposição do Caspar David Friedrich com excursões de velhotes logo de manhã, eram muitos e impressiono-me serem tão organizados e silenciosos. Mal entrei na primeira sala reparei que faziam uma primeira fila em aglomerado, e iam movendo-se lentamente de forma a poderem ver à vez. Aquilo deu-me um certo stress, não sei bem porquê, então decidi ficar sempre em segunda fila, assim podia observar com o meu tempo e fazia gestos para eles passarem à vontade à minha frente. A segunda sala era impossível ver devido à pequena escala dos desenhos e estava lá um guia, passei logo para a seguinte. Voltei lá no fim, quando tinha menos pessoas. Onde existiam quadros com uma escala maior, apesar de nunca serem muito grandes, os velhotes faziam uma pequena plateia e à vez aproximavam-se da pintura. Fiz o mesmo porque funcionava, mas dava prioridade se aparecia alguém de cadeira de rodas, muletas ou com mobilidade reduzida. Mas saltitava de uns para outros quando me encontrava na fila de trás, consoante queria ver durante mais tempo ou não. Às tantas fiquei parada a olhar para a primeira paisagem que aqui vos mostro, as montanhas e a luz de madrugada impressionaram-me e um casal meteu conversa comigo. Nomeadamente, o velhote queria saber donde eu vinha. Disse-lhe que era portuguesa, tinha vindo de Lisboa de propósito para ver a exposição. E que já tinha visto alguns quadros numa viagem a Berlim. Ele contou que era de Colónia, também tinha vindo de propósito, e estavam quadros lá que tinham vindo da sua cidade. Disse-lhe que já tinha estado em Köln a visitar uma amiga, e gostaria de visitar Dresden, porque Friedrich viveu lá e poderia ver mais pinturas. Então, contou-me que havia poucos quadros em formato maior, por causa de terem ardido em Munique. Perguntei se foi durante a II Guerra, respondeu que o incêndio foi antes. Confessei que também amava os quadros pequenos, ele colocou a mão no peito, comovido, disse sim com a cabeça, agradeceu-me e desejou-me boa estadia em Hamburgo.

Categorias
Blog Sobre Arte Viagens

Hamburg: Março 2024 #1

Este ano, no mês de Março estive em Hamburgo: marquei a viagem de forma a abalar de avião na madrugada a seguir às eleições legislativas, para não ficar deprimida. Desliguei aquele canal medonho e andei quilómetros a pé por outros canais a olhar o mundo. O objectivo era ver a exposição do Friedrich na Kunsthalle. Quando lá cheguei o funcionário da recepção informou-me que tinham vendido na Internet todos os bilhetes até ao fim da exposição. Disse-lhe que não sabia, quase chorei, e tinha apanhado o avião de Lisboa de propósito. E tinha visto as suas pinturas numa viagem que fiz a Berlim. Ele tinha os olhos de um azul límpido impressionante. Perguntei-lhe pelo catálogo, disse-me que só havia em alemão. Estávamos a falar em inglês, claro! Disse-lhe que ia comprar na mesma, respondeu-me que assim poderia aprender alemão para ler o catálogo. Respondi que já tinha tentado, mas é muito difícil. E gostaria de um dia ler Rilke em alemão (aí os anjos, os anjos, os anjos…) Já desolada, disse-lhe que me restava ver a arquitectura da cidade que é linda! Então pediu-me para me sentar no hall de entrada, esperar um pouco porque estavam a chegar excursões de velhotes de toda a Alemanha, habitualmente, alguém não podia vir nesses grupos, desistia por motivos de saúde. Se fosse o caso, eu podia visitar a exposição. Sentei-me à espera, um colega dele substituiu no balcão de entrada. Só via casais de velhotes a entrar em fila, são muito organizados e silenciosos. Passado um bocado, os olhos céu límpido vieram na minha direção, perguntou se tinha cartão de crédito, claro que sim. Já ao balcão vendeu-me um bilhete, fez questão de dizer que era o mesmo preço de todos os bilhetes, e dava para as quatro exposições da Kunsthalle. Aconselhou-me a ver as obras de artista contemporâneos no último andar inspirados no Friedrich. Fiquei comovida, agradeci-lhe o gesto. Existem anjos em Hamburgo.

Categorias
Blog Sobre Arte

‘Anselm’ de Wim Wenders

Finalmente vi o ‘Anselm’ de Wim Wenders, e sem o 3D no TVCine, uma vez que ainda não estou curada da doença que apanhei na pandemia, ou seja, maldita misantropia não me leva a por os pés numa sala de cinema. O filme confirmou a minha relação conflitual com a obra do Aselm Kiefer: admiro e em simultâneo assusta-me, rejeito mesmo. Talvez seja um problema cultural, relacionado com a minha miserável condição de portuguesa espanholada, tenho mais afinidades com as culturas do mediterrânio. A escala monumental wagneriana assusta-me, horas e horas de Ópera com recriação de mitologia, tudo aquilo para a eternidade, raios que o partam, os deuses que me acudam! Tive a mesma sensação quando visitei o Museu Pérgamo em Berlim, fiquei esmagada a olhar as portas da Babilónia, é apenas uma das obras monumentais dentro daquela ‘casa de conhecimento e preservação de memória’. Perguntei-me: porquê aqui e para quê? Tenho sentimentos contraditórios com a obra de Anselm Kiefer e com a cultura alemã. Terá a ver com o sentimento de sublime que Kant apresentou na sua Faculdade de Juízo? Lembro-me de ter de o estudar na Faculdade, não foi fácil de entender! Como é que na casa dos vinte anos se vai entender o pensamento de um pietista protestante alemão, que construiu um modelo de sujeito à sua imagem e semelhança, resultando uma complexa abstração? Se bem me lembro, era um modelo de sujeito com um modo de conhecer, agir e sentir ‘superior’, a tal razão tripartida num puzzle muito consistente. O raio do Kant no século XVIII montou o puzzle todo direcionado à perfeição. No caso da estética dita transcendental, do sentimento de belo lembro-me de ser classicamente aprazível e harmonioso, ao contrário do romântico e conflitual sublime, que também poderia ou não ser penoso. E ambos eram preparatórios para o juízo teleológico, a contemplação da natureza era superior à da arte, Kant estava-se a lixar para a arte, a finalidade daquele perfeito puzzle era o transcendente. Por cá no imanente vejo como a ideia de perfeição originou o Holocausto no século XX. Quanto ao Kiefer, anda há muito a escarafunchar as feridas desse passado histórico da sua cultura e confronta-nos com paisagens sublimes em grande escala. Chamam-lhe Nazi, não concordo, apesar de me assustar a sua escala monumental. O facto de estar a escarafunchar o passado nazi não é sinónimo de o ser. Não nos podemos esquecer que Hitler era um artista frustrado. O Kiefer é um grande artista, não faz mal nenhum ao mundo, produz pinturas, esculturas, instalações em larga escala, achei lindo o Wim Wenders filmá-lo a andar de bicicleta no atelier. No futuro, deveríamos poder andar de bicicleta nos museus de arte contemporânea. Ou de patins. O George W. Bush desde que se reformou dedicou-se a pintar uns cães bastante ridículos. O mundo estaria melhor se o Bush tivesse passado a vida inteira a pintar cães.

George W. Bush em 2014, a cor da camisola do artista faz pendant com as pinturas, levam-me a acreditar que são auto-retratos.