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Naturezas-Mortas Sociais 2014

Texto de Nuno Esteves da Silva sobre exposição na Galeria Cossoul, Novembro 2014

Em 2014, dei continuidade às narrativas visuais da série ‘Naturezas-Mortas Sociais’ iniciada em 2012, utilizando também a colagem de modo a associar elementos nas composições pictóricas, mas ampliando a escala e utilizando telas como suporte. Nesse ano apresentei algumas destas colagens na Livraria Miguel de Carvalho em Coimbra e na Galeria Cossoul em Lisboa. Na exposição da Cossoul estiveram acompanhadas do seguinte texto do meu  compagnon de route Nuno Esteves da Silva:

Não vou falar do evidente prazer de fazer que se manifesta nestas pinturas. Nem do prazer de ver que poderá resultar da nossa relação com elas. Trata-se aqui muito mais de matéria do que de virtuosismo, mas não é disso também que quero falar. Essas são dimensões que se poderão manifestar directamente a quem puder olhar. Quero falar de uma outra dimensão que estas pinturas contêm, mas que, em virtude da sua natureza, terá talvez mais dificuldade em se manifestar tão directamente. A Maria João Lopes Fernandes chama a estas suas pinturas «naturezas-mortas sociais». Sabemos que esta expressão, «naturezas-mortas sociais», a pediu emprestada ao nosso amigo Daniel Falb, que é alemão, poeta e filósofo. Cada um poderá interpretar a seu modo o porquê desta designação e o que dela se manifestará nas próprias pinturas. Não serei eu a dar a explicação correcta. Quero, ao invés disso, pensar algumas dificuldades que a sua interpretação suscita.

A própria expressão pode ser encarada como uma brincadeira ou um daqueles paradoxos que Unamuno disse ter passado a vida a criar. Mas tentaremos ver aqui mais que um jogo. E os paradoxos exprimem muitas vezes um sentido que transborda do mero paradoxo. Neste caso o paradoxo consistiria na coincidência da natureza-morta com o social.  Expliquemo-nos: poderíamos conceber uma «natureza-morta social» na qual se misturassem, no meio de frutas e legumes, objectos que manifestassem um estatuto social; mas não é de nada disso que se trata. Nesse caso continuaríamos a ter naturezas-mortas, mas com um certo pendor social. Pelo contrário, o que parece acontecer é a justaposição, num mesmo plano, de dois pontos de vista sobre o real, antagónicos e mutuamente exclusivos: a natureza-morta e o social. E, num primeiro nível, isso acontece da forma mais evidente, ou seja, pela justaposição de pequenos almoços com manifestações e a polícia de choque. O que se passa então?

Para além da justaposição das imagens temos a justaposição de códigos e géneros. E, consequentemente, de atitudes. Nada talvez mais afastado do que, de um lado, a atitude do esteta que disseca a beleza contida nas formas puras dos vegetais e mesmo de animais mortos; e, do outro, a atitude do activista que denuncia as injustiças arrastadas pela impiedosa marcha da sociedade. Ora se a cada uma dessas atitudes, isoladamente, poucas objecções surgirão, de facto, no nosso mundo democrático, já a sua sobreposição é (podemos facilmente imaginá-lo) passível de produzir algum escândalo. É que – dirão alguns – «não se brinca com coisas sérias». E não se mistura o sofrimento com croissants e compotas. Mas, saindo do discurso censório e proibicionista, temos de perguntar, antes, quem fala neste paradoxo e o que quer dizer? Que verdade se exprime aqui? Talvez, para responder a essas perguntas, tenhamos de começar por perguntar que procura de verdade habitava esses lugares aparentemente incompatíveis, a natureza-morta e o social? Enquanto lugares de produção de verdade, alguma relação se deve estabelecer entre eles, que legitimamente podemos pensar ser captada e dar sentido ao discurso destas pinturas. Tentando ser o mais breves e rigorosos possível, podemos dizer que, na natureza-morta, temos um olhar que, desviando-se do movimento do mundo, se fixa em alguns objectos transitoriamente abandonados, procurando reconhecer neles a forma pura, vazia de conteúdo, do tempo. E, no social, temos um olhar que procura reconhecer o movimento imparável, a instabilidade, daquilo que, provavelmente na maioria das sociedades, sempre foi encarado como mais estático e imutável, quando nunca o foi de facto: a organização social; as instituições. Mas é tempo de devolver a pintura ao olhar. Deixemos apenas uma última observação: talvez na relação que aqui se estabelece entre a natureza-morta e o social o paradoxo se transforme em alegoria.

Por MJLFernandes

Chamo-me Maria João Lopes Fernandes (Évora,1969-), sou artista visual e investigadora com um percurso onde estabeleço relações entre as artes visuais e a literatura.

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